30 março 2012

Short Story XXXIII - Gororobas


Éramos muitos irmãos, todos homens, vivendo numa casa sem quintal e pequena, muito pequena. Assim sempre que minha mãe saía ela dizia, “não façam, arte, hein!”. Pra quê! Era só ela virar as costas que nós íamos às artes, no caso, suprimentos alimentares, comidas, gororobas diversas etc. Claro, não tínhamos nada das guloseimas de hoje (nem da época, a de ser registrado), assim era necessário improvisar e eram muitas as “artes”, mas tínhamos umas preferidas, farinha e açúcar (Já comeram?). É bem sofisticado, pega-se um pouco de farinha e acrescenta-se um pouco de açúcar. Tuché! Está pronta a guloseima. A melhor parte era falar com a farinha com açúcar na boca, era uma guerra, um falando na cara do outro para sujar o companheiro (coitada da minha mãe quando chegava). Outra era açúcar derretido. Realmente essa receita era muito complexa e elaborada. Colocávamos um punhado de açúcar numa panela, esquentava até derreter e depois espalhava na pedra da pia para esfriar e tínhamos a mais pura bala de açúcar do Brasil! (claro com um pouco do gosto do alho ou outras coisas que passaram antes pela pia. Acham que a gente limpava!?). Uma arte não tão boa, mas matava a fome, era pão molhado com água e açúcar. Descia fácil. Agora tinha uma que era “a guloseima”: ovo com farinha e açúcar (esses ingredientes nunca faltavam). Era a junção do que havia de melhor e a receita era assim: pegávamos um ou dois ovos crus, misturava num prato a clara com a gema, acrescentava-se farinha e açúcar, mexia um pouco e, olé! Mais uma receita maravilhosa preparada! O bom mesmo era comer esse ovo cru, com farinha e açúcar bem molinha na casa do ovo, buscando o restinho do fundo da casca com a língua. Acho que vou preparar um buffet com essas receitas e convidar meus irmãos para uma degustação  para relembrar esse tempo (claro, eu não vou querer nem olhar). Ah! Só esqueci um pequeno detalhe e por isso não vai dar, todos estão diabéticos, a não ser que eu use adoçante. (hehe)

23 março 2012

Short Story XXXII - Bicicleta


Era amigo da minha mãe, sempre gostei de estar com ela, conversar e estarmos junto. Lembro uma vez que meu pai nos viu juntos conversando e falou: “que tanto conversam aí? Posso participar?” Acho que rolou um certo ciúme... Cuidei dela até falecer, comprando os remédios, fazendo supermercado, visitando-a e ouvindo a sua musiquinha de despedida: Quem parte leva saudade de alguém, e fica chorando de dor. Ai, ai, ai, ai... tá chegando a hora..., meus filhos lembram até hoje. Resumindo, era o filhinho da mamãe, amigo e companheiro, sempre junto, ajudando nos afazeres domésticos, que não eram poucos e cuidando da casa quando ela saía, fazendo gororobas que fizeram surgir um dos meus mais famosos bordões, “melhor comer isso que morrer de fome!”. Quando estava por volta dos meus 14 anos, as coisas começaram a  melhorar, visto que alguns irmão já haviam casado e saído de casa e eu ganhei a minha primeira e única bicicleta da minha vida. Minha mão comprou na antiga Mesbla, que nem existe mais há muito tempo, e foi comprada em suaves prestações, exatamente 12 parcelas. Ela era linda, uma Monark barra forte, aquela que tem uma bola de ferro no meio do quadro e eu a adorava. Lavava, encerava, passava óleo, cuidava como um filho querido, era o meu nirvana da felicidade e realização. Andava para cima e para baixa, com aquele gostoso pneu balão e fui muitas e muitas vezes do Paraiso até o Jockey (isso só sabe quem é de Saint Gangôlo, balneário ao fundo da baia da Guanabara), distante um 20 ou 30 km, não faço ideia, mas eu fazia em cerca de uma hora. Eu tinha amigos que moravam lá e sempre ia para aquelas bandas para tomar banho num açude que havia naquela região, nos seus rios fétidos e poluídos de esgoto, mas o principal, sem dúvida alguma, eram as pessoas. Hoje é fácil chegar lá, tudo asfaltado, mas nas era assim quando moleque, passávamos pelo Colubandê (não tem nada a ver com macumba, ok? É um bairro) e tínhamos de soltar e empurrar a bicicleta de tanta areia que havia em pontos daquela rua, parecia praia. Outra coisa que fazíamos era andar agarrado em caminhões ou ônibus para poupar energia e ganhar velocidade. Hoje os ônibus nem tem mais como agarrar, pois não tem mais apoio para se subir e era lá que nos segurávamos, uma loucura, não sei como ainda estou aqui. Uma vez ia num dos meus passeios, agarrado num ônibus Boassú (antigamente ônibus não tinha número, tinha nome) e quando estava em frente ao cemitério de SG, agarrado ao mesmo, indo à toda, o motorista, mui carinhosamente, começou a me espremer contra o meio fio da calçada. Não conseguia sair daquela situação e estava vendo que seria esmagado contra um poste que se aproximava rapidamente e joguei a bicicleta  para cima da calçada, num ato de desespero, mas havia um pequeno detalhe, o meio fio que dividia a rua do asfalto, bati nele e voei. Fomos juntos, eu a minha querida bicicleta, como unidos que éramos, capotando, virando e ralando na calçada. Me levantei e fui fazer o balanço dos estragos, minha roda da frente tinha virado um oito e precisei carrega-la nas costas até em casa (não lembro de mim, mas lembro perfeitamente como minha bicicleta ficou). Cheguei em casa e procurei logo consertá-la para novas aventuras que ainda viriam e assim fomos nos divertindo e pagando as prestações (doze, lembram?). Todo mês eu ia na Mesbla em Niterói, onde hoje é a Loja Leader, pagar a prestação. Quando completou um ano a última prestação foi paga, então ela foi roubada.

16 março 2012

Short Story XXXI - Cal


Trabalhei muito com meu pai e desde que me entendo por gente. Lembro de uma vez que estávamos construindo a congregação do Porto Novo, eu, pequeno, mal aguentava a pá de construção e lutava para encher as latas de areia. Numa dessas minhas tentativas a pá passou reto e quase atingiu a perna do meu pai e ele, falou: “ôpa! Longe de quem trabalha e perto de quem come”. Não me recriminou ou ralhou comigo e isso foi marcante, afinal até hoje lembro, pois ele poderia ter me chamado a atenção, tipo: “cuidado seu destrambelhado, olha o que faz”, mas não, apoiou. Eu e meu irmão mais velho estávamos sempre nessas furadas de obras e similares e tínhamos uma competição entre nós dois para ver quem levava mais tijolos de uma vez só. Aí um levava 8, o outro levava 10, e depois 12 até que caia no chão e quebrava tudo, uma festa, coisas de moleques. Estava sempre fazendo coisas legais, tipo, descarregando caminhão, levanto saco de cimento de 50 kg na cabeça, virando concreto, carregando areia (Ai! Como já subi morros carregando coisas, era uma formiga. Já ralei, acreditem, mas era divertido). Também aprendi muito, pois via como fazia e sempre tive apoio para fazer, mas nunca fui bom, então nunca passei de ajudante, mas eu aprendi a fazer e tocar obra, que usei muito nas 39 obras que minha esposa fez na nossa casa (haja puxadinhos!). Mas a história de hoje é sobre um fato que nem sei como fazer vocês se transportarem para a situação, pois é muito inusitada, mas vamos lá. A igreja que meu pai era pastor tinha um telhado, era um telhado enorme, com cerca de 50 metros de comprimento. Esse telhado cobria a laje da igreja e em cima dessas lajes haviam vigas, com cerca de um metro, que cortava todo o perímetro a cada 5 mestros. Assim tínhamos um imenso terraço com essas barreiras, que eram as vigas que sustentavam a laje, e em cima o telhado de telhas de barros e o madeiramento. Esse “terraço", na verdade um telhado, era usado para algumas coisas, como por exemplo casa. Pois é, eu e meus 7 irmão moramos nesse telhado por alguns anos. Como éramos crianças não nos incomodávamos, mas lembro até hoje do irmão dessa história comendo pulgas. Pois é, haviam muitas pulgas lá, porque havia muita poeira, e o lençol amanhecia cheia de bolinha de sangue (nosso, claro) e brincávamos de captura-las e esmaga-las na unha, mas ele não fazia assim, ele as mordia e comia, mas voltemos. O telhado tinha multiusos e meu pai ia usá-lo para receber uns pastores que iriam dormir nesse telhado (já tínhamos nos mudado nessas época) e nos mandou pintar, isso mesmo, pintar o madeiramento do telhado com cal. Sei que nem sabem o que é isso, mas cal é um produto usado para pintar casas de pobres e quando cai no olho arde. Podem acreditar, arde e muito. E estávamos os dois bocós pintando e quando uma gota de cal caia no olhos, nós saíamos correndo, saltando as barreira (as vigas) até chegar numa torneira e lavar o olho. Que coisa, né? Hoje eu levaria uma vasilha com água e deixava perto, mas achávamos divertido sair correndo, saltando e gritando para lavar o olho, enquanto o outro ficava morrendo de rir. Nesse dia meu irmão ficou com um cêcê terrível e ninguém aguentava, aí meu pai falou, “tenho desodorante no meu gabinete” e o levou para aplicar no sovaco. Coitado, voltou com todo ardido, meu pai passou loção pós barba no manôlo.

09 março 2012

Short Story XXX - Preconceito


Hoje vivemos num mundo melhor, mais evoluído, lutando contra o preconceito, batalhando pela igualdade e punindo quem não segue essas normas de convivência, por isso já vou começar o post me defendendo para não apanhar muito, como apanhei quando contei sobre como víamos a morte no meu tempo. Quando moleque o mundo não era assim, nossas piadas eram sobre aleijados, tortinhos, mulheres esquisitas, fanhos, malucos, negros (que nem posso mais chamar de como chamávamos), pessoas especiais (também não posso mais dizer como as chamava), portugueses (esses continuam sendo escrachados), papagaios e quaisquer outras pessoas ou situações que fossem diferentes de nós. Só não sofria bulliyng os gordos, porque simplesmente quase não existiam crianças gordas, não lembro de nem uma, se não... ah! iriam sofrer também, com certeza! Era divertido, mas cruel, reconheço hoje, mas não era assim naquela época. Hoje também, se deixar, as crianças não seriam diferentes e sim iguaizinhas a nós da década de 70, porque o mesmo crueldade que existia em nós continua existindo nas de hoje também. Mas chega de filosofia e vamos aos fatos do passado, objeto dessa história. Como dizia zoávamos qualquer ser ou situação diferente de nós e no nosso bairro existiam duas anãs, que só de ver percebe-se que são diferentes (hehe), assim a molecada caia em cima quando elas passavam na rua. Achávamos aquilo o máximo e nos divertíamos à beça, mas elas não (não sei por que). Um dia quando fazíamos nossa cota de maldade diária uma delas não aguentou mais, deu meia volta e veio para onde eu estava (os demais saíram correndo, só o bobo ficou. Talvez fosse o menor). Estava eu sentado num meio fio, em frente a uma barbearia que existia próximo à minha casa. Lá trabalhava um velho barbeiro, muito ignorante, que raspava a nossa cabeça deixando apenas um topete na frente. Conseguem visualizar? Cabeça raspada com um tufo de cabelo na frente? Era assim o corte de cabelo das crianças, que chamávamos “corte topetinho”. Depois, quando a criança crescia um pouco mais, tipo uns 14 anos, o corte evoluía para o que chamávamos “Príncipe Danilo”, que era basicamente o mesmo corte topetinho, mas com um tufo maior cobrindo a parte de cima da cabeça. Dizíamos que era colocado um pinico na cabeça e passava a máquina no que ficava de fora. Era uma máquina de cortar cabelo manual, não existia elétricas, que ia fazendo inheque, inheque, inheque ao redor da nossa cabeça. Aquilo grudava no couro cabeludo e tirava pedaços, nas mãos daquele ignorante (até hoje tenho trauma dele). Voltando a anã, ela tinha unhas enormes, pintadas de vermelho e muito bem cuidadas e as usou para agarrar minhas orelhas (que pensei que fossem ser arrancadas). Ela ficou uns cinco minutos agarradas às minhas orelhas, me dando uma grande lição de moral, sobre respeito aos diferentes, que nunca mais esqueci. Não lembro minha idade, mas como ela era maior que eu, devia ter uns oito ou nove anos. Ela está viva, de vez em quando ainda a veja passando na mesma rua, mas agora sozinha, não sei o que aconteceu com a outra.

02 março 2012

Short Story XXIX - Linguiça


Tenho contado muitas histórias em que me estrepo (as campeãs de audiência), mas não trago nenhum trauma ou ressentimento, era feliz, acreditem. Mas..., essa história..., eu confesso, é dolorosa, nem gosto muito de lembra-la, mas, pelos registros históricos... vai lá. Quando moleque fiz muitas coisas para ganhar dinheiro, mas sem obrigações ou necessidade de sobrevivência, fazia porque gostava de trabalhar, nunca precisei ajudar em casa e meus pais nunca pediram nada, éramos pobres, mas todos ao nosso redor também o eram e não nos faltava nada (o padrão da época era: comer, beber e vestir. Ponto). Hoje? Sem comentários. Portando essas histórias que para uns e outros são tristes, para mim não. Essa, como já disse, é diferente. Bem, vamos lá, Sempre trabalhei, e uma das atividades que eu fiz foi vender linguiça. Isso mesmo, linguiça, e de porta em porta, nas casas. Tudo começava acordando a 4:00 da manhã, pegava dois ônibus e ia até a fabrica de linguiças. Tinha de chegar cedo, se não elas acabavam e a viagem era em vão, pois eram muitos os vendedores de linguiça como eu e se formava uma grande fila de interessados quando ainda estava escuro. Algumas vezes isso aconteceu, mas quase sempre conseguia meus 20 quilos de linguiça e embutidos, como lombinho e costelinha, mas o forte era linguiça, tipo 15 de linguiça e 5 dos demais produtos. Comprava, pagava e começava o meu sofrimento, carregar aquele peso. Minhas mãos ardiam, nas alças da bolsa de pano que minha mãe tinha feito para mim. Pegava o primeiro, depois o segundo ônibus e ia à luta, vender. Voltava para o bairro onde morava e ia, de porta em porta, batendo palmas e oferecendo meus produtos, não era fácil. Lembro que as linguiças vinham embaladas em sacos plásticos de 1 quilo, mas nem todos podiam comprar um quilo inteiro e eu tinha que dividir o saco de um quilo em duas ou até em três partes. Usava uma “balança de peixeiro” para fazer esse trabalho, mais o que valia mesmo era o olho, vamos chamar de “balançolho. O local que eu mais vendia era a favela “do Gato”, onde ficava a Praia da Magata, que foi destruída por uma rodovia e depois por um estaleiro (vide historia XXIII). Lá ia eu, gritando pelas vielas: “olha a linguiça” e, como disse, batendo de porta em porta, ouvindo muitos e muitos nãos até conseguir concluir minha venda. Essa luta eu tive por 6 longos, muito longos, meses até que consegui um novo emprego. Lá eu ia usar minha habilidade, adquirida num duro e longo curso: datilografia. Era uma editora, lá pude utilizar então minhas habilidades de datilógrafo e fazer uma atividade diferente, mas era muito, muito longe e o salário não era grande coisa, fora que eu estudava à noite, vinha dormindo em pé no ônibus, que raramente aparecia, tinha dia de espera-lo por duas horas e quando chegava estava entupido, difícil de entrar e depois que entrava não pode tirar o pé do chão, se não não conseguia mais coloca-lo e tinha de vir num pé só, tipo saci-pererê. Uma vez conversava com uma pessoa que trabalhava nessa editora e falei da minha última atividade e quanto ganhava. O, para mim,  sem noção me questionou porque eu não continuava vendendo linguiças, visto que eu conseguia ganhar mais dinheiro que no escritório? Ia tentar responder, mas ele não entenderia.