Éramos muitos irmãos, todos homens, vivendo numa casa sem
quintal e pequena, muito pequena. Assim sempre que minha mãe saía ela dizia, “não façam, arte, hein!”. Pra
quê! Era só ela virar as costas que nós íamos às artes, no caso, suprimentos
alimentares, comidas, gororobas diversas etc. Claro, não tínhamos nada das
guloseimas de hoje (nem da época, a de ser registrado), assim era
necessário improvisar e eram muitas as “artes”, mas tínhamos umas preferidas, farinha e açúcar (Já comeram?). É bem sofisticado, pega-se um pouco de
farinha e acrescenta-se um pouco de açúcar. Tuché! Está pronta a guloseima. A
melhor parte era falar com a farinha com açúcar na boca, era uma guerra, um
falando na cara do outro para sujar o companheiro (coitada da minha mãe quando
chegava). Outra era açúcar derretido. Realmente essa receita era muito
complexa e elaborada. Colocávamos um punhado de açúcar numa panela, esquentava até derreter
e depois espalhava na pedra da pia para esfriar e tínhamos a mais pura bala de
açúcar do Brasil! (claro com um pouco do gosto do alho ou outras coisas que
passaram antes pela pia. Acham que a gente limpava!?). Uma arte não tão boa, mas
matava a fome, era pão molhado com água e açúcar. Descia fácil. Agora tinha uma
que era “a guloseima”: ovo com farinha e açúcar (esses ingredientes nunca
faltavam). Era a junção do que havia de melhor e a receita era assim: pegávamos
um ou dois ovos crus, misturava num prato a clara com a gema, acrescentava-se
farinha e açúcar, mexia um pouco e, olé! Mais uma receita maravilhosa preparada!
O bom mesmo era comer esse ovo cru, com farinha e açúcar bem molinha na casa do
ovo, buscando o restinho do fundo da casca com a língua. Acho que vou preparar
um buffet com essas receitas e convidar meus irmãos para uma degustação para relembrar esse tempo (claro, eu não vou
querer nem olhar). Ah! Só esqueci um pequeno detalhe e por isso não vai dar, todos estão
diabéticos, a não ser que eu use adoçante. (hehe)
Meus filhos têm curiosidade de conhecer as histórias que meu pai contava e eu tento contar uma ou outra, mas percebo que não é a mesma coisa. Assim, a pedidos, resolvi registrar algumas situações vividas nesse meio século de vida. Quem sabe um dos meus netos não queiram conhecer, né?
30 março 2012
23 março 2012
Short Story XXXII - Bicicleta
Era amigo da minha mãe, sempre gostei
de estar com ela, conversar e estarmos junto. Lembro uma vez que meu pai nos
viu juntos conversando e falou: “que tanto conversam aí? Posso participar?”
Acho que rolou um certo ciúme... Cuidei dela até falecer, comprando os
remédios, fazendo supermercado, visitando-a e ouvindo a sua musiquinha de
despedida: ♪Quem parte leva saudade de alguém, e fica chorando de dor. Ai, ai,
ai, ai... tá chegando a hora...♫, meus filhos lembram até hoje.
Resumindo, era o filhinho da mamãe, amigo e companheiro, sempre junto, ajudando
nos afazeres domésticos, que não eram poucos e cuidando da casa quando ela
saía, fazendo gororobas que fizeram surgir um dos meus mais famosos bordões,
“melhor comer isso que morrer de fome!”. Quando estava por volta dos meus 14
anos, as coisas começaram a melhorar, visto que alguns irmão já
haviam casado e saído de casa e eu ganhei a minha primeira e única bicicleta da
minha vida. Minha mão comprou na antiga Mesbla, que nem existe mais há muito
tempo, e foi comprada em suaves prestações, exatamente 12 parcelas. Ela era
linda, uma Monark barra forte, aquela que tem uma bola de ferro no meio do
quadro e eu a adorava. Lavava, encerava, passava óleo, cuidava como um filho
querido, era o meu nirvana da felicidade e realização. Andava para cima e para
baixa, com aquele gostoso pneu balão e fui muitas e muitas vezes do Paraiso até
o Jockey (isso só sabe quem é de Saint Gangôlo, balneário ao fundo da baia da
Guanabara), distante um 20 ou 30 km, não faço ideia, mas eu fazia em cerca de
uma hora. Eu tinha amigos que moravam lá e sempre ia para aquelas bandas para
tomar banho num açude que havia naquela região, nos seus rios fétidos e
poluídos de esgoto, mas o principal, sem dúvida alguma, eram as pessoas. Hoje é
fácil chegar lá, tudo asfaltado, mas nas era assim quando moleque, passávamos
pelo Colubandê (não tem nada a ver com macumba, ok? É um bairro) e tínhamos de
soltar e empurrar a bicicleta de tanta areia que havia em pontos daquela rua,
parecia praia. Outra coisa que fazíamos era andar agarrado em caminhões ou
ônibus para poupar energia e ganhar velocidade. Hoje os ônibus nem tem mais
como agarrar, pois não tem mais apoio para se subir e era lá que nos
segurávamos, uma loucura, não sei como ainda estou aqui. Uma vez ia num dos
meus passeios, agarrado num ônibus Boassú (antigamente ônibus não tinha número,
tinha nome) e quando estava em frente ao cemitério de SG, agarrado ao mesmo,
indo à toda, o motorista, mui carinhosamente, começou a me espremer contra o
meio fio da calçada. Não conseguia sair daquela situação e estava vendo que
seria esmagado contra um poste que se aproximava rapidamente e joguei a
bicicleta para cima da
calçada, num ato de desespero, mas havia um pequeno detalhe, o meio fio que
dividia a rua do asfalto, bati nele e voei. Fomos juntos, eu a minha querida
bicicleta, como unidos que éramos, capotando, virando e ralando na calçada. Me
levantei e fui fazer o balanço dos estragos, minha roda da frente tinha virado
um oito e precisei carrega-la nas costas até em casa (não lembro de mim, mas
lembro perfeitamente como minha bicicleta ficou). Cheguei em casa e procurei
logo consertá-la para novas aventuras que ainda viriam e assim fomos nos
divertindo e pagando as prestações (doze, lembram?). Todo mês eu ia na Mesbla
em Niterói, onde hoje é a Loja Leader, pagar a prestação. Quando completou um
ano a última prestação foi paga, então ela foi roubada.
16 março 2012
Short Story XXXI - Cal
Trabalhei muito com meu pai e desde que me entendo por gente.
Lembro de uma vez que estávamos construindo a congregação do Porto Novo, eu,
pequeno, mal aguentava a pá de construção e lutava para encher as latas de
areia. Numa dessas minhas tentativas a pá passou reto e quase atingiu a perna
do meu pai e ele, falou: “ôpa! Longe de quem trabalha e perto de quem come”. Não
me recriminou ou ralhou comigo e isso foi marcante, afinal até hoje lembro, pois
ele poderia ter me chamado a atenção, tipo: “cuidado seu destrambelhado, olha o
que faz”, mas não, apoiou. Eu e meu irmão mais velho estávamos sempre
nessas furadas de obras e similares e tínhamos uma competição entre nós dois para ver quem levava
mais tijolos de uma vez só. Aí um levava 8, o outro levava 10, e depois 12
até que caia no chão e quebrava tudo, uma festa, coisas de moleques. Estava
sempre fazendo coisas legais, tipo, descarregando caminhão, levanto saco de
cimento de 50 kg na cabeça, virando concreto, carregando areia (Ai! Como já
subi morros carregando coisas, era uma formiga. Já ralei, acreditem, mas era
divertido). Também aprendi
muito, pois via como fazia e sempre tive apoio para fazer, mas nunca fui bom,
então nunca passei de ajudante, mas eu aprendi a fazer e tocar obra, que usei
muito nas 39 obras que minha esposa fez na nossa casa (haja puxadinhos!). Mas a
história de hoje é sobre um fato que nem sei como fazer vocês se transportarem
para a situação, pois é muito inusitada, mas vamos lá. A igreja que meu pai era
pastor tinha um telhado, era um telhado enorme, com cerca de 50 metros de
comprimento. Esse telhado cobria a laje da igreja e em cima dessas lajes haviam
vigas, com cerca de um metro, que cortava todo o perímetro a cada 5 mestros.
Assim tínhamos um imenso terraço com essas barreiras, que eram as vigas que sustentavam a laje, e em
cima o telhado de telhas de barros e o madeiramento. Esse “terraço", na verdade um
telhado, era usado para algumas coisas, como por exemplo casa. Pois é, eu e
meus 7 irmão moramos nesse telhado por alguns anos. Como éramos crianças não
nos incomodávamos, mas lembro até hoje do irmão dessa história comendo
pulgas. Pois é, haviam muitas pulgas lá, porque havia muita poeira, e o lençol
amanhecia cheia de bolinha de sangue (nosso, claro) e brincávamos de
captura-las e esmaga-las na unha, mas ele não fazia assim, ele as mordia e comia, mas voltemos. O telhado tinha multiusos e meu pai ia usá-lo para receber uns
pastores que iriam dormir nesse telhado (já tínhamos nos mudado nessas época) e
nos mandou pintar, isso mesmo, pintar o madeiramento do telhado com cal. Sei
que nem sabem o que é isso, mas cal é um produto usado para pintar casas de
pobres e quando cai no olho arde. Podem acreditar, arde e muito. E estávamos os
dois bocós pintando e quando uma gota de cal caia no olhos, nós saíamos correndo,
saltando as barreira (as vigas) até chegar numa torneira e lavar o olho. Que
coisa, né? Hoje eu levaria uma vasilha com água e deixava perto, mas achávamos
divertido sair correndo, saltando e gritando para lavar o olho, enquanto o
outro ficava morrendo de rir. Nesse dia meu irmão ficou com um cêcê terrível e ninguém aguentava, aí meu pai falou, “tenho desodorante no meu gabinete” e o
levou para aplicar no sovaco. Coitado, voltou com todo ardido, meu pai passou loção pós barba no manôlo.
09 março 2012
Short Story XXX - Preconceito
Hoje vivemos num mundo melhor, mais evoluído, lutando contra
o preconceito, batalhando pela igualdade e punindo quem não segue essas normas
de convivência, por isso já vou começar o post me defendendo para não apanhar
muito, como apanhei quando contei sobre como víamos a morte no meu tempo.
Quando moleque o mundo não era assim, nossas piadas eram sobre aleijados,
tortinhos, mulheres esquisitas, fanhos, malucos, negros (que nem posso mais
chamar de como chamávamos), pessoas especiais (também não posso mais dizer como
as chamava), portugueses (esses continuam sendo escrachados), papagaios e quaisquer outras
pessoas ou situações que fossem diferentes de nós. Só não sofria bulliyng os
gordos, porque simplesmente quase não existiam crianças gordas, não lembro de
nem uma, se não... ah! iriam sofrer também, com certeza! Era divertido, mas
cruel, reconheço hoje, mas não era assim naquela época. Hoje também, se deixar,
as crianças não seriam diferentes e sim iguaizinhas a nós da década de
70, porque o mesmo crueldade que existia em nós continua existindo nas de hoje também.
Mas chega de filosofia e vamos aos fatos do passado, objeto dessa história.
Como dizia zoávamos qualquer ser ou situação diferente de nós e no nosso bairro
existiam duas anãs, que só de ver percebe-se que são diferentes (hehe), assim a
molecada caia em cima quando elas passavam na rua. Achávamos aquilo o máximo e
nos divertíamos à beça, mas elas não (não sei por que). Um dia quando fazíamos
nossa cota de maldade diária uma delas não aguentou mais, deu meia volta e veio
para onde eu estava (os demais saíram correndo, só o bobo ficou. Talvez fosse o
menor). Estava eu sentado num meio fio, em frente a uma barbearia que existia próximo
à minha casa. Lá trabalhava um velho barbeiro, muito ignorante, que raspava a
nossa cabeça deixando apenas um topete na frente. Conseguem visualizar? Cabeça
raspada com um tufo de cabelo na frente? Era assim o corte de cabelo das
crianças, que chamávamos “corte topetinho”. Depois, quando a criança crescia um
pouco mais, tipo uns 14 anos, o corte evoluía para o que chamávamos “Príncipe
Danilo”, que era basicamente o mesmo corte topetinho, mas com um tufo maior
cobrindo a parte de cima da cabeça. Dizíamos que era colocado um pinico na
cabeça e passava a máquina no que ficava de fora. Era uma máquina de cortar
cabelo manual, não existia elétricas, que ia fazendo inheque, inheque, inheque
ao redor da nossa cabeça. Aquilo grudava no couro cabeludo e tirava pedaços,
nas mãos daquele ignorante (até hoje tenho trauma dele). Voltando a anã, ela
tinha unhas enormes, pintadas de vermelho e muito bem cuidadas e as usou para
agarrar minhas orelhas (que pensei que fossem ser arrancadas). Ela ficou uns cinco
minutos agarradas às minhas orelhas, me dando uma grande lição de moral, sobre
respeito aos diferentes, que nunca mais esqueci. Não lembro minha idade, mas
como ela era maior que eu, devia ter uns oito ou nove anos. Ela está viva, de
vez em quando ainda a veja passando na mesma rua, mas agora sozinha, não sei o
que aconteceu com a outra.
02 março 2012
Short Story XXIX - Linguiça
Tenho contado muitas histórias em que me estrepo (as campeãs
de audiência), mas não trago nenhum trauma ou ressentimento, era feliz, acreditem. Mas..., essa história..., eu confesso, é dolorosa, nem gosto muito de lembra-la, mas,
pelos registros históricos... vai lá. Quando moleque fiz muitas coisas para
ganhar dinheiro, mas sem obrigações ou necessidade de sobrevivência, fazia
porque gostava de trabalhar, nunca precisei ajudar em casa e meus pais nunca
pediram nada, éramos pobres, mas todos ao nosso redor também o eram e não nos
faltava nada (o padrão da época era: comer, beber e vestir. Ponto). Hoje? Sem
comentários. Portando essas histórias que para uns e outros são tristes, para
mim não. Essa, como já disse, é diferente. Bem, vamos lá, Sempre trabalhei,
e uma das atividades que eu fiz foi vender linguiça. Isso mesmo, linguiça, e de
porta em porta, nas casas. Tudo começava acordando a 4:00 da manhã, pegava dois
ônibus e ia até a fabrica de linguiças. Tinha de chegar cedo, se não elas acabavam e
a viagem era em vão, pois eram muitos os vendedores de linguiça como eu e se
formava uma grande fila de interessados quando ainda estava escuro. Algumas vezes isso
aconteceu, mas quase sempre conseguia meus 20 quilos de linguiça e embutidos, como
lombinho e costelinha, mas o forte era linguiça, tipo 15 de linguiça e 5 dos
demais produtos. Comprava, pagava e começava o meu sofrimento, carregar aquele
peso. Minhas mãos ardiam, nas alças da bolsa de pano que minha mãe tinha feito
para mim. Pegava o primeiro, depois o segundo ônibus e ia à luta, vender. Voltava
para o bairro onde morava e ia, de porta em porta, batendo palmas e oferecendo
meus produtos, não era fácil. Lembro que as linguiças vinham embaladas em sacos
plásticos de 1 quilo, mas nem todos podiam comprar um quilo inteiro e eu tinha
que dividir o saco de um quilo em duas ou até em três partes. Usava uma “balança
de peixeiro” para fazer esse trabalho, mais o que valia mesmo era o olho, vamos
chamar de “balançolho. O local que eu mais vendia era a favela “do Gato”, onde
ficava a Praia da Magata, que foi destruída por uma rodovia e depois por um
estaleiro (vide historia XXIII). Lá ia eu, gritando pelas vielas: “olha a
linguiça” e, como disse, batendo de porta em porta, ouvindo muitos e muitos nãos
até conseguir concluir minha venda. Essa luta eu tive por 6 longos, muito
longos, meses até que consegui um novo emprego. Lá eu ia usar minha habilidade,
adquirida num duro e longo curso: datilografia. Era uma editora, lá pude
utilizar então minhas habilidades de datilógrafo e fazer uma atividade
diferente, mas era muito, muito longe e o salário não era grande coisa, fora
que eu estudava à noite, vinha dormindo em pé no ônibus, que raramente aparecia,
tinha dia de espera-lo por duas horas e quando chegava estava entupido, difícil
de entrar e depois que entrava não pode tirar o pé do chão, se não não
conseguia mais coloca-lo e tinha de vir num pé só, tipo saci-pererê. Uma vez conversava com uma
pessoa que trabalhava nessa editora e falei da minha última atividade e quanto
ganhava. O, para mim, sem noção me questionou
porque eu não continuava vendendo linguiças, visto que eu conseguia ganhar mais
dinheiro que no escritório? Ia tentar responder, mas ele não entenderia.
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