29 outubro 2011

Short Story X - A merendeira



Dinheiro era algo que não existia para nós, os livros que usávamos eram dos irmãos mais velhos, que tinham de usar com carinho e cuidado, escrever com lápis, para poder ser apagado e ser reutilizado pelo mais novo, pois não existia livros do governo (odiava usar livro usado, sempre fui metido). Esse procedimento já era uma prévia do mundo “sustentável e reciclável” de hoje. Para ir a escola eu tinha uma pasta preta, tipo as usadas por advogados, feita de courino, onde levava meus livros, cadernos e meu pão com manteiga embrulhado num pedaço de papel de pão (às vezes também colocava açúcar junto com a manteiga. Não existia margarina nem óleo de soja, era manteiga e banha de porco). Adorava o cheiro que ficava na pasta do pão misturado com os livros, lápis e cadernos, lembro até hoje, mas eu tinha um sonho: uma merendeira. Era meu sonho de consumo, via as crianças usando e ficava imaginado uma só minha. A merendeira era, guardada as devidas proporções, como as que as crianças usam hoje, uma caixinha quadrada, com um furo na tampa para passar uma garrafinha e uma alça para ser levada. Eu via aquelas merendeiras sendo levadas pelas outras crianças e a desejava, mas não tinha o vil metal. O tempo foi passando e fui descobrindo maneiras de consegui-la: trabalhando, catando ferro velho, garrafas, cobre, metal ou vendendo minhas preás na feira que era em frente à minha casa. Assim resolvi focar, parar de comprar mariolas e fazer um pé de meia com o dinheiro que conseguia, para poder comprar a minha própria merendeira. Fui amealhando os recursos, poupando meus centavos, guardando até que consegui o suficiente para compra-la e assim o fiz. Era linda! De plástico verde, com a tampa branca bordada em alto relevo, marcando o plástico flexível. Tinha um buraco para passar a garrafinha vermelha, maravilhosa! Levei para casa, preparei meu pão com manteiga, enchi a garrafinha de suco de caju e fui orgulhoso para a escola. O único problema é que eu já tinha completado 13 anos e estava ridículo, daquele tamanho, com uma merendeira de criança pendurada no ombro. 

25 outubro 2011

Short Story IX - Tábua de Sebo


Pobre todos já sabem que eu era, mas isso não me causava nenhum constrangimento ou embaraço, porque os outros garotos com que convivia eram iguais ou piores que eu. Poucos eram “ricos” (tinham TV preto e branco e/ou bicicleta), o restante eram ferrados como eu, mas isso não tinha importância naquela época, não consumista como hoje e medidos pelo o que se tem: éramos felizes. Pelo descrito, logicamente não ganhava brinquedos e fazia os meus próprios brinquedos (quando criança só lembro de ter ganho um único brinquedo no natal, um caminhão de bombeiro que esguichava água.), e um dos meus brinquedos favoritos eram os “carrinhos de lata”. Sabem o que é? Vou explicar. Eram latas, como as de leite em pó, com um furo em cada extremidade, que era transpassado por um arame, que servia como um eixo, era preenchida com areia para dar peso e assim poder ser puxado como um carrinho de criança, só que era uma lata (o carrinho estava na imaginação). Assim íamos brincando, puxando nossos “carrinhos” pelas calçadas da rua e eu tirava onda, os meus carros eram enormes, um verdadeiro comboio, com seis, até dez ou doze latas, interligadas uma na outra. Show! Claro que os vizinhos não gostavam nem um pouco, porque quase sempre a lata abria, seja por rodar forte, por bater em algo ou por fadiga de material mesmo, e a terra entornava em frente às casas dos mesmos. Claro, não limpávamos nada, ficava entornado mesmo. Também havia a “tábua de sebo,” que era um pedaço tábua com cerca de 60 cm, encerada com o puro sebo do açougue do seu Antônio (não tinha acesso à graxa ou cera). O coitado sofria, todo dia aparecia um monte de moleques pedindo um pedaço de sebo e ele quase sempre dava, cortando num tronco de madeira com sua grande faca (a carne era cortada em pedaços de troncos de árvores gigantes, não havia resinas como hoje). Ele era legal, sempre tinha meu sebo pra passar na minha tábua. Devem estar se perguntando, mas para que servia essa tábua de sebo? Pra descer o morro, ora! Havia uma ladeira, próxima à nossa casa, que era concretada. Íamos até o topo, sentávamos na tábua e descíamos a ladeira a toda. A minha tábua era uma das mais velozes e quando eu vinha morro abaixo tinham de sair da frente, se não passava por cima (não havia freio, o freio era um lixão que havia na esquina: estabancava-nos nele). Um dia eu me preparei, dei meu grito de guerra, “sai da frente! Lá vou eu!” e desci. A princípio foi uma descida tranquila, mas minha tábua começou a girar lentamente para a esquerda (não havia direção) e comecei a descer de lado. Continuou girando e fiquei agora de costas a toda velocidade, mas, como desgraça pouca é bobagem, ela foi indo em direção à sarjeta, que desciam os esgotos das casas e eu não conseguia desviar (estava de costas, lembra?). Assim vinha eu, a toda, como passageiro, pelo canto da sarjeta quando uma pedra segurou a tábua, ela ficou presa e eu fui arremessado pra frente, caindo com as costas na sarjeta de esgoto, que foi ralando e sendo comida pelo concreto áspero, coberta pelo esgoto fétido. Foi uma mistura de sangue e lama e, pra ficar legal, tive de aturar as gargalhadas dos “amigos”, rindo, e muito, da minha desgraça (crianças são cruéis). Para fechar com chave de ouro: corri para casa, com as costas ardendo, doendo muito e chorando e minha mãe cuidadosa e carinhosamente passou vinagre com sal para desinfetar os ferimentos das minhas pobre costas. Já passaram vinagre com sal na carne viva? Arde.

21 outubro 2011

Short Story VIII - O Tubo

Como já disse, agradeço a Deus por ter ainda todos os meus dedos, mãos e a minha visão (principalmente depois da pólvora preta), porque vou dizer uma coisa...! Já aprontei cada uma! Quando moleques nós tínhamos umas atividades que hoje eu acho hardcore, mas era nossa diversão. Uma delas era derreter chumbo. Hoje sei que os vapores do chumbo não fazem nada bem, causando problemas psíquicos e câncer, mas quando crianças não sabíamos de nada disso e vivíamos brincado de derreter chumbo para fazer bonecos, escultura diversas, peso para pesca ou simplesmente vê-lo ficar líquido. O chumbo nós tirávamos de uma casa velha abandonada da rua. Olha, não sei se já foram queimados com chumbo derretido, então vou informar, arde. Essa atividade era realizada, como tudo, de forma muito precária, com uma fogueira com restos de madeira de caixa de feira e uma latinha de sardinha, que usávamos para colocar o chumbo a ser derretido. Outra diversão era explodir latas de aerossol. Sempre que achávamos uma num lixo era uma festa, sabíamos que ia ter festa. Latas de aerossol eram raras, porque eram caras, pois pra matar mosquitos nós usávamos a “bomba de flit”. Já ouviram falar? Era uma bomba, tipo de bicicleta, com um recipiente na frente para colocar o inseticida líquido. Aí era só bombear o ar e o “flit” saia do outro lado, em forma de vapor, para matar os mosquitos, muriçocas, baratas e insetos diversos.Também gostávamos de andar pelos muros das casas, se equilibrando (os melhores eram as mais altos). Nosso vizinho colocou azulejo para impedir que nós andássemos no muro dele, mas nada podia impedir os educados filhos de Alberto. Mas voltando aos aerossóis. Como dizia era diversão porque íamos explodi-las. O processo era o seguinte, fazíamos uma fogueira, um fogo bem abundante e quando estava bem forte, jogávamos a lata de aerossol no fogo. Então era esperar um pouco e bum! Era uma grande explosão. O que era de janelas abrindo, com os vizinhos procurando entender o que estava ocorrendo! Só vendo. Uma vez o fundo de uma dessas latas voou grudou na batata da perna de um amigo. Foi hilário! A lata grudou na perna dele, pois derreteu a pele e fiou aquela argola preta na perna. Foi muito engraçado (não foi comigo, tinha de rir). Depois disse passamos a manter uma distância segura. Mas a big one foi quando explodimos um tubo de imagem de TV. Já explodiram um? Pois eu dou aconselho, tomem cuidado. Foi a maior explosão que já vi na minha vida e olha que eu já vi muitas hein! (um dia eu conto algumas). Primeiro tivemos que conseguir um tubo com o vácuo, normalmente as oficinas tiram esse vácuo antes de descarta-los, mas esse estava intacto. Nossos olhos brilharam quando o vimos. Levamos, com dificuldade, pois era pesado, para os fundos da minha casa e começamos o processo. Primeiro começamos a jogar umas pedrinhas, como não quebrava (na verdade essa era nossa intenção, quebrar para vender o vidro), aumentamos o tamanho das pedras, e nada! O vidro era muito grosso e duro, quando meu amigo radicalizou, pegou um paralelepípedo e arremessou contra o tubo. Aí sim explodiu, bum! Sentimos até o chão tremer. Foi demais, ficamos apavorados e saímos correndo. Repetindo, graças a Deus eu ainda enxergo, o vidro grosso do tubo ficou como vidro moído, picadinho.

18 outubro 2011

Short Story VII - O Quadriciclo


Não quero chorar miséria, apenas contar histórias, por isso tenho de falar, éramos duros. Não tínhamos brinquedos e precisava nos virar e usar nossa imaginação e habilidades. Assim estávamos sempre inventando e construindo nossos brinquedos, como patinetes feitos de rodas de bilhas ou “carrinho de rolimã” (era assim que chamávamos, feitos com rolamentos usados). Haviam duas versões desses patinetes, um para andar sentado, que eram o terror dos dedões, pois passavam por cima dos coitados quando estávamos remando com as mãos no chão, dando impulso para ele andar, e uma versão para andar em pé, parecido com os modernos patinetes de alumínio de hoje, mas como as rodinhas eram de ferro e muito pequenas, quando uma pedra entrava embaixo da roda nós voávamos por cima de “guidom”. Tudo muito precário, feitos de madeira e pregos, construídos por nós mesmos, crianças, sem nenhuma supervisão de adultos, um caos! Mas um dia tudo mudou, nós achamos no lixo um quadriciclo. Ele já era velho e enferrujado, sem a proteção na empunhadura da alavanca e com pedaços de ferro meio soltos. Tinha quatro rodinhas (por isso o nome), um banco de metal amassado, sem encosto, na parte atrás e era dirigido pelos pés (as duas rodas da frente giravam num eixo permitindo virar para esquerda e direita). Esse brinquedo era o máximo para nós e tocávamos o zaraia com ele. Íamos sempre na velocidade máxima, com um sentado (gritando o tempo todo, “mais rápido, mais rápido!”) e outro atrás empurrando como se fosse o motor. O problema era a alavanca que foi construída para fazer o carro andar, como se fosse pedal de uma bicicleta, só que com as mãos pois, como tinha um “motor” atrás empurrando o carrinho, aquela alavanca ficava solta, indo pra trás e pra frente se movendo freneticamente sozinha, movida pela engrenagem do carrinho. Pois bem, uma vez eu ia de motor para meu irmão caçula, que ia sentando e “dirigindo” o possante com os pés, quando, ao passarmos por uma protuberância na calçada, subimos e capotamos. Voamos nós três, eu ele e o trambolho. Foi uma confusão danada e eu, com dificuldade, consegui me desvencilhar do carrinho e do meu irmão que estava em cima de mim, mas não conseguir tirar o brinquedo, a alavanca tinha encravado na virilha dele. Um pedaço de ferro velho e enferrujado estava enfiado dentro do meu irmão e eu não sabia o que fazer. Um conhecido viu aquela situação e ajudou, “extraiu” o ferro cuidadosamente e o levou para o pronto socorro municipal (já éramos conhecidos lá). Levou doze pontos, quase ganhou na Loteria Esportiva.




Short Story VI - A 1ª vez ninguém esquece.



Meu pai era Pastor, mas também ex-policial. Consegue imaginar esses dois seres alienígenas, pois nunca deixou de ser um ou outro, dentro de uma só pessoa? Pois é, o pau cantava. Décadas de 50 e 60, outros costumes, podemos dizer outra cultura, o evangelho chegando e o exemplo tinha de ser dado, assim juntava o guardião da moralidade, honestidade e dos bons costumes, um líder religioso de personalidade, digamos assim, um pouco forte a um “poliça”. Não prestava. Meus irmãos mais velhos têm histórias de surras homéricas que levavam, normalmente por motivos justos e fortes, como tomar banho no rio, ver televisão, beber guaraná, usar sandálias de dedo, pegar uma abobrinha num terreno baldio etc, assim eles não têm nenhum ressentimento (rs). Um desses teve a velha correia do meu pai arrebentada no seu corpo e pelo lado da fivela! (não adiantou nada). Ouvíamos muitas de suas histórias de quando era policial, como quando prendeu uma quadrilha que estava encurralada numa casa. Era ele mais um amigo, desarmados, há de ser ressaltado, e usando apenas seu gogó e o respeito que a malandragem nutria por ele. A história é longa, mas resumindo eles ficavam gritando um para o outro do lado de fora da casa, “Bala na agulha, Zé?”, “Sim, bala na agulha”, “vamos invadir agora!”, descrevendo o terror psicológico que faziam com os pobres coitados, os meliantes. No fim eles saíram tremendo e chorando de dentro da casa, suplicando pelas suas vidas (desarmados! Não esqueçam). Outra que ele contava era como prendeu mais de uma dúzia de malandros e os levou em fila indiana pelas ruas de Niterói até a delegacia e ninguém fugiu! Como sabemos os malandros respeitam quem os trata com carinho, amor e consideração. Assim, como eram “bem tratados”, temiam e tremiam. Eu como quase fui a raspa do tacho, da longa série de filhos, não peguei essa virulência, mas recebi meu bocado. Tinha meus 11 ou 12 anos, vivia na igreja, lógico, e no porão da mesma havia uma grande sala aonde funcionavam dois departamentos da igreja, a secretaria e a tesouraria. Era um salão aberto, sem divisão entre elas e eu, juntamente com uma molecada, tocava o zaraia no salão. O velho tesoureiro pediu que eu parasse com a bagunça e como educado que era, não parei. Ele replicou dizendo que não podia ter ninguém na tesouraria e para eu me retirar. Aí eu, mui educadamente, me desloquei até aonde seria o meio da sala, fui até uma extremidade da parede, levantei o pé direito e vim arrastando meu pé no chão até a outra parede, traçando, acintosamente, uma linha imaginária e dividindo a sala em duas (como o Tratado das Tordesilhas) e repliquei: “lado direito, tesouraria. Lado esquerdo, secretaria. Estou na secretaria”. Não prestou. O velho me dedurou e meu pai desceu bufando pelas ventas para onde eu estava. Quando vi aquela figura enorme crescendo sobre mim (ele era gordo nessa época), agarrando fortemente meu braço e já conhecendo a fama, tremi, antevendo o que iria acontecer. Como sempre meu pai explicava o que eu deveria e o que eu não deveria ter feito, aonde eu errei e como deveria proceder. Depois do sermão sacou a sua inesquecível correia velha para, vocês sabem fazer o que, baixar o sarrafo! Eu que não era dos mais inteligentes da série, mas nem por isso o mais burro, comecei a chorar e a gritar, “Não! Chega! Tá doendo muito! Ah, que dor e sofrimento!” e assim ia eu gritando como um condenado e a correia cantando. Tinha irmão que era mané, dizia “não doeu”, apanhava até doer. Eu não, pulava como uma pulga, agarrado pelos colarinhos,  enquanto as correiadas pegavam na minha calça de tergal nova (última moda) que minha mãe tinha feito para mim, que cobria minhas finas pernas.


P.S. Isto é uma história dramatizada. Ressalto que meu pai foi um grande homem, sempre apoiando os filhos e ensinando nos caminhos corretos da vida. Foi muito querido, admirado e respeitado por todos, apenas era outra época, outros costumes. Com o tempo ele foi mudando (grande qualidade dele). Um pai muito bom que deixou muitas saudades (foto dele com minha mãe no meu casamento).

Short Story V - Cabeça

Tenho um irmão que, quando pequeno, tinha um comportamento bem peculiar pra dormir. Ele tinha alguns poucos apelidos como Cabeça, Orelha, Topo Gigio, Comprido, Cabeção, Didio, Pau de Virar Tripa (não sei por que tinha esses apelidos) e muitos outros mais, ou menos interessantes. Moleque inteligente, tipo Peter Parker, the Spider Man, “Brilliant, but lazy”. Era um grande cara, excelente em quase tudo que fazíamos como crianças, como, jogar pião, soltar cafifas, jogar bolas de gude, etc. Vivíamos soltos no pasto, nas casas dos amigos, andando de bicicleta (emprestada, claro. Não tínhamos a nossa), brincando de garrafão (não vou explicar o que é), bandeirinha (também não rs) e outras mais. Andávamos abraçados pelas aprazíveis ruas da minha cidade (a dos terrenos baldios com lixo). Hoje seriamos chamados de boiolas, mas era um outro tempo, em que amarrávamos cachorro com linguiça e menos malícia que hoje. Uma vez conheci seu lado protetor. Um moleque tentou pegar minha cafifa. Ah, amigo, não prestou! Ele veio em minha defesa e os dois rolaram no chão na rua chamada “de trás”. Ele agarrado, batia na cabeça do coitado com uma lata, enquanto espremia a cara dele numa cerca de arame farpado. Sinistro! Nunca mais esqueci essa imagem. Mas o legal mesmo era quando ele ia dormir. Todos têm uma técnica, uma forma de relaxar para dormir, hoje eu ouço música, alguns veem televisão, meu pai ouvia rádio alto (coitada da minha mãe), a CBN e outros pensam em coisas agradáveis, como um bonito jardim, cavalos cavalgando, ou flores, finalmente tem o que tomam remédio mesmo (como Michael Jackson). Ele não, ele era um “pouco” diferente. Sua preparação para relaxar era balançar a cabeça. Colocava uma das mãos contornando o pescoço, passando por uma das orelhas, flexionando o cotovelo, e ia então usando o braço flexionado como uma alavanca para ajudar a balançar a “pequena” cabeça para esquerda e para direita, num movimento contínuo e rápido. Devem estar pensando, doido! Estão enganados. Ele não balançava a cabeça simplesmente como um doido, tinha todo um repertório musical, no caso a imitação da banda de música da igreja, que tinha o sugestivo nome de “furiosa”, e ele “tocava” os mais variados hinos da Harpa com a boca, como “Os guerreiros se preparam...”, “Deus prometeu com certeza...”, “Nós abrimos, este culto...”, etc com o som original dos instrumentos, tipo o som do trombone, o som do saxofone, o som do pistom etc.. Não me lembro do som da tuba e do bumbo, que seria o ápice. Hilário! Só vendo pra crer. No princípio tínhamos medo, depois nos acostumamos. Era um maluco beleza.

Short Story IV - Pólvora do despacho

Início dos anos 70. Tempo dos black powers, das calças bocas de sino, do Tony Tornado e sua indefectível ♬ na BR3 ♫. Eu um franzino moleque que vivia solto pelos pastos, como dizia minha mãe, tinha dez anos de idade. Era tão magro que uma vez me perguntaram enquanto eu andava pela rua, “vai pescar?” Eu, atônito, por não entender a pergunta respondi, “não, por quê?” E o gaiato respondeu, “então para onde vai com esses dois caniços?”. Voltando. Eu, solto no pasto vivia de recolher quaisquer objetos de valor para vender nos ferros velhos da cidade. A cidade, para quem acha feia hoje imagine nessa época. Muitos terrenos baldios, muito lixo lançado nos mesmos (eram assim que eram descartados, quase não havia coleta) e eu literalmente ficava como pinto neles, catando e recolhendo xepas, de valor, há de ser registrado, tipo vidro, lata, papelão etc. Enquanto voltava de uma dessas perscrutações vi um despacho de macumba. Nele havia um belo cartucho de pólvora. Pólvora era nossa alegria, estávamos sempre explodindo coisas e nos divertindo com isso. Até a cabeça de fósforo nós usávamos. Fazíamos um furo num poste (eram de madeira, ok?), retirávamos cuidadosamente o fósforo da cabeça do palito, colocávamos dentro do buraco previamente feito, enfiávamos de volta o prego, batia e bum! Muito divertido (agradeço a Deus todos os dias por ainda ter ainda todos os meus dedos, mãos e braços). Voltando, de novo, ao despacho. Vi aquele belo cartucho. Eram 200 gramas de pura pólvora preta. Coisa de primeira, pensei eu. Vou me divertir pacas. Assim levei meu “precioso” para um pequeno corredor atrás da minha casa e fui ver o que dava para fazer. A princípio separei uma pequena quantidade e tentei queimar com um palito de fósforo que havia levado, e nada, a pólvora não queimava. Aumentei um pouco a quantidade, e nada, ela não queimava. Assim tive uma ideia hardcore, entornei todos os 200 gramas num montinho, enfiei alguns fósforo nele e queimei os fósforos enfiados, não a pólvora direto. Aí funcionou, bum! Foi uma grande explosão, tudo ficou preto e o corpo começou a arder. Passei a mão na cara para limpá-la, mas não foi uma boa ideia, a pele veio junto, colada nas mãos e ela ficou, literalmente, em carne viva. Corri para minha mãe (a dos bois soltos no pasto), sem entender bem o que havia ocorrido e quando ela me viu, sem pele na cara, peito todo preto e queimado, braços e joelhos chamuscados, começou a rir (tenho esse problema também. Vejo a coisa preta e rio), minha irmã caçula correu apavorada e depois custou a perder o medo de mim. Por sorte nesse dia minha tia Zóza estava fazendo uma visita à minha mãe e rapidamente me levou ao pronto socorro municipal (de ônibus). Lá, pela primeira vez na minha vida, eu que tinha enorme pavor, pedi que me aplicassem uma injeção para amenizar a dor. Foram dez dias internado na unidade de queimados do Santa Mônica.

Short Story III - A Carretilha

Tinha cerca de 17, 18 anos. Vivíamos o tempo da ditadura, com o presidente dos cavalos, João Figueiredo. Era o zelador duma igreja e tinha um objetivo, ser o melhor zelador que aquela igreja já teve. Assim encerava os banheiros, que era de ladrilhos vermelhos; lavava o branco chão de cimento das minúsculas salas e as encerava com cera incolor; passava óleo de Peroba nos 70 bancos de imbuia; lavava a igreja, juntamente com meu amigo PB, eu era o RR, empilhando os 70 bancos nas paredes em pilhas de quatro etc. No fim fracassei e fui considerado um dos piores zeladores que a igreja já teve, eram muitas as reclamações. Também eram 700 pessoas sujando e somente eu limpando! Fazer o quê. Fui derrotado. Mas não é sobre isso que quero falar. Como toda boa igreja, ela vivia em obras e, na parte dos fundos, havia uma comprida corda, presa a uma carretilha, que era usada para levar os materiais de construção para o 3º andar. Eu, quando passei pela corda, tive uma brilhante ideia, ir me levantando, eu mesmo, na corda e ter uma visão privilegiada do cenário tão “bucólico”. Assim prendi meu pé no gancho que estava numa ponta da corda e fui me puxando na outra extremidade. Foi apenas uma fração de segundos, assim que meu pé descolocou do chão, meu tronco levantou o resto do corpo e eu me estatelei com as costas no chão. Foi um momento duplamente doloroso, uma pela dor nas costas em si e outra pelo ar que se recusava a entrar nos meus pulmões. O ar não vinha e eu já desesperado procurava de alguma maneira me colocar de pé, mas a dor era muita, e tentava fazer algo que fizesse com que esse precioso bem entrasse no meu organismo. Foi terrível, vi a morte, quando uma baforada de ar fresco conseguiu entrar.

Short Story II - O assalto


Trabalhava numa pequena empresa e os setores eram separados em dois andares diferentes, num ficava a tesouraria e a diretoria e no outro o DP e contabilidade (minha querida área que tem me dado muitas “alegrias” ao longo da minha vida). Um belo dia estava realizando minhas tarefas desafiadoras, interessantes e agradáveis na contabilidade. O tempo não passava (não sei por que) e resolvi dar uma pequena voada indo ao outro andar tomar um cafezinho. Até hoje não entendi porque fui impelido a ir àquele andar naquela hora, pois foi a primeira vez que fiz isso. Assim me despedi da galera, informei aonde iria e desci as escadas. A porta foi aberta e fui recebido com um cano de PVC de 100 mm na minha cara, na verdade parecia bem maior, era uma enorme arma. A empresa estava sendo assaltada e eu fui lá para não ficar de fora da festa. Passei 40 minutos com três meliantes armados que torturaram, fizeram chantagem psicológica, bateram, deram coronhadas e chutes, bem como tapas na cara e pontapés. Depois fui amarrado e amordaçado, juntamente com meus colegas de empresa, enfiado num minúsculo banheiro e trancados lá dentro. Foi o momento que vi a morte mais de perto.

Short Story I - O terraço



Tinha cerca de 9, 10 anos. Morava num sobrado, com dois andares, e o último andar era uma laje, totalmente aberta, sem nenhuma mureta de proteção. Era um bonito dia de sol, sem vento, e eu soltava minha cafifa nessa laje, no 3º andar. Nunca fui um bom soltador de cafifas ou qualquer outra brincadeira de criança, como pião, bola de gudes, bandeirinha, queimado, amarelinha ou garrafão etc (claro que muitos nunca ouviram falar dessas brincadeiras). Meu irmão acima de mim, não. Sempre foi muito, muito bom. Ele à vezes me usava para tirar bolinhas de gudes de outros garotos incautos e depois dividíamos o butim. Voltando ao 3º andar, “tentava” soltar minha cafifa e distraidamente ia andando para trás procurando um ventinho que a levantasse e nada! Tentava prá lá, prá cá e nada! Assim foi passando o tempo e, de costas, ia andando, andando, andando quando tropecei num tijolo “deixado” perdido no chão da laje e caí. Foi um grande tombo. Me estatelei no chão quente da laje e minha cabeça pendeu para fora da laje, e olhei para baixo do precipício, quase caindo de uma altura de 7 metros. Foi a primeira vez que recordo que Deus salvou a minha vida.