25 outubro 2011

Short Story IX - Tábua de Sebo


Pobre todos já sabem que eu era, mas isso não me causava nenhum constrangimento ou embaraço, porque os outros garotos com que convivia eram iguais ou piores que eu. Poucos eram “ricos” (tinham TV preto e branco e/ou bicicleta), o restante eram ferrados como eu, mas isso não tinha importância naquela época, não consumista como hoje e medidos pelo o que se tem: éramos felizes. Pelo descrito, logicamente não ganhava brinquedos e fazia os meus próprios brinquedos (quando criança só lembro de ter ganho um único brinquedo no natal, um caminhão de bombeiro que esguichava água.), e um dos meus brinquedos favoritos eram os “carrinhos de lata”. Sabem o que é? Vou explicar. Eram latas, como as de leite em pó, com um furo em cada extremidade, que era transpassado por um arame, que servia como um eixo, era preenchida com areia para dar peso e assim poder ser puxado como um carrinho de criança, só que era uma lata (o carrinho estava na imaginação). Assim íamos brincando, puxando nossos “carrinhos” pelas calçadas da rua e eu tirava onda, os meus carros eram enormes, um verdadeiro comboio, com seis, até dez ou doze latas, interligadas uma na outra. Show! Claro que os vizinhos não gostavam nem um pouco, porque quase sempre a lata abria, seja por rodar forte, por bater em algo ou por fadiga de material mesmo, e a terra entornava em frente às casas dos mesmos. Claro, não limpávamos nada, ficava entornado mesmo. Também havia a “tábua de sebo,” que era um pedaço tábua com cerca de 60 cm, encerada com o puro sebo do açougue do seu Antônio (não tinha acesso à graxa ou cera). O coitado sofria, todo dia aparecia um monte de moleques pedindo um pedaço de sebo e ele quase sempre dava, cortando num tronco de madeira com sua grande faca (a carne era cortada em pedaços de troncos de árvores gigantes, não havia resinas como hoje). Ele era legal, sempre tinha meu sebo pra passar na minha tábua. Devem estar se perguntando, mas para que servia essa tábua de sebo? Pra descer o morro, ora! Havia uma ladeira, próxima à nossa casa, que era concretada. Íamos até o topo, sentávamos na tábua e descíamos a ladeira a toda. A minha tábua era uma das mais velozes e quando eu vinha morro abaixo tinham de sair da frente, se não passava por cima (não havia freio, o freio era um lixão que havia na esquina: estabancava-nos nele). Um dia eu me preparei, dei meu grito de guerra, “sai da frente! Lá vou eu!” e desci. A princípio foi uma descida tranquila, mas minha tábua começou a girar lentamente para a esquerda (não havia direção) e comecei a descer de lado. Continuou girando e fiquei agora de costas a toda velocidade, mas, como desgraça pouca é bobagem, ela foi indo em direção à sarjeta, que desciam os esgotos das casas e eu não conseguia desviar (estava de costas, lembra?). Assim vinha eu, a toda, como passageiro, pelo canto da sarjeta quando uma pedra segurou a tábua, ela ficou presa e eu fui arremessado pra frente, caindo com as costas na sarjeta de esgoto, que foi ralando e sendo comida pelo concreto áspero, coberta pelo esgoto fétido. Foi uma mistura de sangue e lama e, pra ficar legal, tive de aturar as gargalhadas dos “amigos”, rindo, e muito, da minha desgraça (crianças são cruéis). Para fechar com chave de ouro: corri para casa, com as costas ardendo, doendo muito e chorando e minha mãe cuidadosa e carinhosamente passou vinagre com sal para desinfetar os ferimentos das minhas pobre costas. Já passaram vinagre com sal na carne viva? Arde.

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